Música para gloria e EU

16/02/2016 17:16

Por Ricardo Moreira Braz do Nascimento

Sempre fui observador de detalhes e coerência em fatos narrados, estou falando de coerência dentro do contexto. Por exemplo, quando era criança me lembro de um comercial de bolacha recheada em que ao abrir o pacote, saíam luzes  do pacote de bolacha e as crianças saiam voando pela rua. Nunca gostei deste comercial porque ninguém jamais saiu voando ao abrir um pacote de bolacha. A questão não é lógica, mas sim coerência dentro do contexto, neste comercial nada sugeria que aquele era um mundo mágico.

Quando ainda namorava minha esposa, os irmãos da igreja decidiram fazer uma festa surpresa para o meu aniversário. Até aí tudo bem, mas logo após a surpresa e a música de parabéns, minha então namorada disse: “Faça uma declaração de amor pra mim.”, então respondi: “como assim o aniversário é meu”; ela respondeu que eu deveria fazer esta declaração de amor a ela. Ainda com todos olhando respondi que se o aniversário era meu, o homenageado do dia era eu, então eu deveria receber uma declaração. No aniversário dela, ela receberia a tal declaração de amor (neste dia aprendi que não se deve discordar das mulheres).

Entendo que deve haver coerência em tudo o que fazemos. Suponhamos que eu queira dedicar palavras de amor à minha esposa, então começo a dizer: “Minha esposa querida como você me ama!...” Concordam comigo que esta frase não é nem de longe uma declaração de amor do marido para a esposa?

Eu ainda estava na graduação em teologia, quando um amigo comentou que as diretrizes que a igreja está tomando não são definidas pelos seus principais pastores e muito menos pelos teólogos do nosso tempo, mas sim pelos cantores. Os cantores do meio gospel decidem se precisamos priorizar a comunhão ou o avivamento nas igrejas. Quando um cantor(a) lança seu álbum, sabemos que o tema daquele álbum será tema de pregações, encontros, vigílias, coreografias, etc. Quem não se lembra dos “adoradores extravagantes” que choravam e rodopiavam durante o louvor, e para receber os aplausos da igreja ficavam de costas?

Esta tendência é tão forte que praticamente todos os cantores gospel são também pastores, muitos divulgam vídeos com estudos bíblicos. No entanto muitos destes cantores não possuem qualificação teológica e na maioria das vezes tem pouco tempo de conversão e mesmo assim propõem novas interpretações da bíblia, alguns afirmam que receberam revelações diretamente por Deus. Um dos grandes escândalos da música gospel em 2015 foi com o cantor Thalles Roberto, quando disse que a música “Pais e filhos” da banda Legião Urbana deveria ser cantada todo domingo nas igrejas. A cantora Mariana Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, disse que se Jesus viesse ao mundo nos dias de hoje ele “...poderia ter até uma banda, porque hoje a linguagem que atrai todo mundo é a música.” E isto seguida do seu esposo, Felippe Valadão, afirmando que o burrinho que Jesus andava era “a BMW da época”.

Ainda não acabou, algo mais sutil invadiu nossas igrejas. A música gospel tomou o lugar dos hinários. Enquanto o hinário convida a congregação a louvar com letras sérias, que exaltam o nome de Deus e convidam a adoração, a música gospel pede as palmas enquanto suas letras massageiam o ego. Estamos vivendo dias em que a congregação não oferece seu louvor individual e os “ministros de louvor” são artistas. O momento de louvor parece mais um show e ai do pastor que tentar interferir pedindo alguma música ou dizendo ao que deve parar de cantar antes da hora. Não tenho nada contra as músicas novas no culto, no entanto tenho observado que muitas destas músicas, apesar da bela melodia, não são musicas de adoração a Deus.

Adoração é o mesmo que prestar culto, porem diversas letras não são de adoração, mas sim de culto ao ego. Muitas vezes Deus é colocado em segundo plano, como coadjuvante. Por exemplo, na música Raridade do cantor Anderson Freire, em dado momento diz “Não chore se o mundo ainda não notou. Já é o bastante Deus reconhecer o seu valor.” Este trecho diz claramente que Deus é um premio de consolação diante a rejeição do mundo. Esta música não tem uma só frase de adoração a Deus, ela é uma música de autoajuda gospel. A música “Clareia” do cantor Thalles Roberto é outro exemplo de um Deus coadjuvante. Nesta música, das 5 frases da letra, 3 é “Através de mim, Jesus, clareia!”. Pergunto a todos: será que Deus realmente precisa de alguém pra brilhar?

Em Gênesis 2:7 diz que Deus “soprou em suas [do homem] narinas o fôlego de vida”, mas curiosamente na música Abraça-me do cantor André Valadão, logo na primeira estrofe diz “Tirar teu fôlego com minha fé ... E te adorar”. Como é possível tirar o fôlego daquele que nos deu o fôlego da vida? E onde esta na bíblia que para adorar a Deus é preciso tirar Seu fôlego? Na música Não Morrerei do cantor Marquinhos Gomes, no final: “Quem tem promessa de Deus, não morre não, ... E tem a fé, a fé de Abraão”. Mas em Hebreus cap. 11, ao falar de várias pessoas que viveram pela fé, no versículo 39 diz “E todos estes, embora tendo recebido bom testemunho pela fé, contudo não alcançaram a promessa;” Abraão está incluído entre os que não alcançaram a promessa. Agora respondam: se o próprio Abraão morreu sem alcançar a promessa, como é que alguém com a fé de Abraão não vai morrer “enquanto a promessa não se cumprir”?

Como se não fosse o bastante a maioria dos cantores gospel (pra não dizer todos) são pastores e muitas vezes nem sabemos ao certo de qual igreja fazem parte, isto quando os cantores não fundam suas próprias igrejas. Enquanto escrevia este artigo não consegui me lembrar de nenhum cantor gospel que não fosse pastor. Em muitos casos o ciclo é o mesmo: 1. trata-se de um cantor de pouca expressão na música (secular), 2. que está com a carreira decadente (isto quando não é um simples back vocal numa banda qualquer), 3. de repente dá-se a notícia de que o artista tal se converteu ao evangelho, 4. em tempo recorde seu novo CD Gospel está sendo vendido e finalmente 5. Pouco tempo depois este cantor é ordenador pastor ou pastora.

Não estou dizendo que um cantor não possa se tornar pastor, mas para ordenação pastoral muitas igrejas exigem formação teológica e em todas elas um bom tempo de preparação, em que se observa a vida, comportamento e valores do candidato a pastor e, só depois de uma longa prova é que a ordenação acontece. Muitas igrejas exigem de 3 a 5 anos de seminário em regime de internato para então ordenar o pastor. Mas curiosamente a música gospel tem sido o caminho mais rápido para se tornar pastor ou pastora.

Toda minha preocupação com a música gospel vem da preocupação com a qualidade da nossa igreja. Qualquer pai ou mãe fica atento ao que seus filhos ouvem ou veem, pois sabem que “as más companhias corrompem os bons costumes” (I Coríntios 15:33). E não é porque está tocando na igreja ou sendo vendido na seção gospel da loja que se torna bom. Não pretendo desqualificar totalmente os cantores que citei neste artigo, apenas recomendo a todos que analisem letra por letra das músicas. Precisamos oferecer ao nosso Deus adoração. Comecei dizendo que precisamos ser coerentes com nossas ações, se vou adorar a Deus com música, preciso apresentar a Ele uma música que realmente o adore e não apenas uma melodia bonita que faz bem para o meu próprio ego enquanto Deus fica em segundo plano.